OS TRIBUNAIS DE SANTA VEHEME

Os Tribunais de Santa Vaheme Quem cursou o ensino médio sabe o que foi a Santa Veheme, também chamada "Corte Sagrada". A "Liga da Corte Sagrada", como também era conhecida, funcionava como supremo tribunal secreto na Vestfália (região da Alemanha, em torno das cidades de Dortmund, Münster, Bielefeld, e Osnabrück) durante a Idade Média, período da história da Europa entre os séculos V e XV. "Quanto menos as pessoas sabem do passado e do presente, tanto mais impreciso será o juízo que farão sobre o futuro", escreveu Freud em 1927. Freud explica... mas parece que a história tem que se repetir, pois ninguém gosta de estudar e refletir sobre o que acontece. Principalmente no passado século XX e no atual e miserável século XXI, a expiação dos erros se dá pelas chibatadas de repetirmos os mesmos equívocos de sempre. Os tribunais "santas vehemes" podem não ter desaparecido. Permanecem como brasas adormecidas sob as cinzas, aguardando a oportunidade de um sopro, uma fagulha, para incendiarem novamente a civilização. O primeiro tribunal Santa Veheme começou quando ocorriam migrações e invasões dos povos bárbaros para o território de Roma. Qualquer semelhança com o que hoje ocorre com a onda de refugiados é mera coincidência. Tribunais como esse visavam coibir, principalmente, os delitos cometidos contra a Igreja Católica, daí o termo "Santa". Dizem que o vocábulo "vehme" vem do alemão e significa "condenar"; mas não encontrei fundamentos para essa etimologia. O Império Romano, assim como acontece com as culturas de hoje, entrou em decadência entre 476 d.C. e o final do primeiro milênio. Além do declínio econômico e cultural, o Cristianismo, enquanto religião institucionalizada, contribuiu para a queda do Império no Ocidente. A mudança de paradigmas, tal como hoje, abalaram todo o sistema: os estatutos, instituições e formas de administrar a sociedade começaram a esfarelar. Em muitos lugares se espalhou a criminalidade, a desordem, a liberação desenfreada dos costumes sexuais, a corrupção e a ilegalidade. Foi então que a Santa Veheme "tornou-se necessária" aos olhos do conservadorismo radical, pois mudanças extremas acarretam reações exageradas. O tribunal do terror, organizado através de um conjunto de ligas secretas, nasceu, quase que da noite para o dia, com o intuito de reprimir as desordens dos bárbaros (os que pertencessem a outras civilizações ou falassem outras línguas) ou as perturbações da ordem por parte dos cidadãos. Transcorria o reinado de Carlos Magno (Carolus Magnus ou Charlemagne, 768 d.C. a 814 d.C.), monarca guerreiro filho de Pepino, o Breve, dinastia espúria dos mordomos do paço, cuja política era voltada para o expansionismo militar. Carolus não era um verdadeiro cristão, mas fingia ser (carolus=CAROLA), bajulando a ortodoxia religiosa. Conta-se que ele chegou em Roma no final de novembro de 799 para atender a um pedido do Papa Leão III que não conseguia defender a cidade. Já era noite. Carolus foi descansar numa igreja e cochilou ajoelhado, fingindo rezar diante do altar. De repente, por trás dele, o Papa Leão III lhe meteu pela cabeça a coroa de imperador romano. Surpresa! mas certamente Carlos Magno já nutria a ideia de se tornar imperador, pois essa sempre fora a estratégia dos carolíngios desde a França merovíngia. Mal coroa havia se ajeitado no magno cocuruto de Carolus, o Papa tratou de se ajoelhar e beijou-lhe os pés e proclamando "ave, Imperator! Ave Charlemagne". De entre as sombras das colunas, elevou-se o cântico dos piedosos clérigos anunciando urbi et orbi a coroação; e os cidadãos de Roma invadiram o templo com flores, frutas e muito incenso, aplaudindo ruidosamente: "ave, Imperator!, ave, ave!!. O rei dos francos tornara-se imperador romano e rei do mundo, Imperator Augustus (é desse modo, meus caros watsons, que as coisas são feitas até hoje, com pequenas variações). Estava assentada a pedra fundamental dos tribunais da Santa Veheme. Mais tarde, reza a lenda, Carlos Magno enviou um emissário ao Papa para o aconselhamento de como lidar com pessoas pacíficas que insistiam em recusar o batismo católico. O Papa não respondeu, mas caminhou lentamente até o jardim e começou a cortar ervas daninhas e pendurá-las para secar. O emissário retornou impressionado e contou a Carlos Magno o que vira: "O Santo Papa cortou ervas daninhas e as pendurou para secar". O Imperador não dormia de touca; captou a divina mensagem e o recado divino do divino Papa, pois como vocês todos sabem, o Papa "é o porta-voz de Deus" neste que é o melhor dos mundos (... apesar de o dogma da infalibilidade Papal só ter sido promulgado em 18 de julho de 1870). Mesmo assim, e dessa forma, o tribunal Santa Vehme, cuja missão sagrada consistiu em cortar ervas daninhas e pendurá-las para secar, floresceu para a honra e glória da Igreja pois a infalibilidade das decisões do Papa já era mencionada desde o ano 90 depois de Cristo, quando Clemente I teve que intervir nos assuntos políticos de Corinto, afirmando que falava em nome do Espírito Santo. Os membros do tribunal secreto tinham uma tarefa celestial, portanto monárquica. A aplicação sumária da justiça sobre quem fosse considerado culpado de qualquer coisa, sob qualquer pretexto, mesmo inexistindo provas ou indícios, decorria dessa infalibilidade atribuída às luzes do Espírito Santo: "Deus não precisa de tempo para julgar, nem de provas". Alguém denunciava outrem e, ao amanhecer do dia, um bilhete acusatório aparecia cravado na porta do infeliz com uma caveira desenhada. A instrução, acusação, julgamento e leitura da sentença seguiam-se no prazo estipulado de dois ou três dias. Depois, a fogueira ou o cadafalso e confisco dos bens. Os julgadores tinham o título de francos-juízes (juízes livres); sigilosos, nunca eram revelados no transcorrer sumário do "processo" os nomes dos acusadores. Para quem leu "O Processo" de Franz Kafka a comparação no século XX cai como uma luva: "Alguém devia ter caluniado Josef K., visto que uma manhã o prenderam, embora ele não tivesse feito qualquer mal. [...] - Larguem-me, com mil diabos! - gritou K. para os guardas que o haviam forçado a recuar até ao guarda-roupas. Quem vem surpreender-me ainda na cama não pode esperar que me encontre de terno. - Não adianta protestar - responderam os guardas que permaneciam muito calmos, mesmo quase tristes, conseguindo por esse meio desconcertá-lo ou de certo modo causar-lhe hesitações. - Que cerimônias ridículas ― murmurou ainda, mas tirando um casaco de cima da cadeira, conservou-o nas mãos durante um momento como se o submetesse à apreciação dos guardas. Estes abanaram a cabeça. - Tem que ser terno preto ― disseram. Então, K. arremessou o casaco para o chão e exclamou, sem ele próprio saber qual o sentido das suas palavras: - Ainda não é a audiência principal. Os guardas sorriram mas mantiveram a postura. - Tem de ser um terno preto." Pois idêntico ao romance, o tribunal Santa Veheme tomava conhecimento abstrato de todos os crimes ou simples atos de rebeldia. Quaisquer denúncias. Suas sentenças eram executadas por meios secretos, sem que ninguém soubesse quem eram os carrascos. A execução acontecia sob invocação divina e sob os auspícios dos Santos Apóstolos. No moderno Kafka, ... "um dos homens pôs-lhe as mãos no pescoço, enquanto o outro lhe enfiava profundamente uma faca no coração e aí a rodava duas vezes. Moribundo, K. viu ainda os dois homens muito perto do seu rosto, com as faces quase coladas à sua, a observarem o desfecho. '-Como um cão! - disse'. Era como se a vergonha devesse sobreviver-lhe." Uma vez executado, o corpo do criminoso era pendurado numa árvore para secar e comunicar a todos o fato; e intimidar os incautos. Isso me faz lembrar o Tiradentes que, após o enforcamento, teve o corpo esquartejado e espalhado pelas estradas das Minas Geraes, a cabeça espetada no alto de um poste em Vila Rica. A principal pena aplicada pelo tribunal era o enforcamento; mas admitia-se também, conforme a gravidade do caso, o empalamento (punição que consistia em espetar, pelo orifício natural e inferior do corpo do condenado, uma longa estaca, deixando o infeliz dessa maneira até a morte, conforme descreve Houaiss). Para o caso de bruxaria, a pena reservada às mulheres era o estupro seguido de esfolamento em vida e a fogueira. Se a mulher estivesse grávida ou amamentando, a criança morria junto, pois era criatura do diabo. No fim da Idade Média, os tribunais Santa Veheme perderam progressivamente sua importância, até Santo Ignácio de Loyola criar a Ordem dos Jesuítas (Companhia de Jesus) e, por consequência, os tribunais da Santa Inquisição, hoje denominada "Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé" ( http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/index_po.htm ). Peço permissão para citar a resenha da Fnac portuguesa do livro "Jesuítas e Inquisição, Cumplicidades e Confrontações" de José Eduardo Franco e Célia Cristina Tavares: "A Inquisição é um tema explosivo. Se juntarmos os Jesuítas à Inquisição, mais explosiva se torna a matéria de estudo. A tentação de tomar posição, de julgar o passado, torna-se quase irrefreável, caindo-se, muitas vezes, em apreciações simplistas. Pintamos a história a preto e branco e facilmente nos armamos em juízes ferozes dos nossos antepassados. O exercício da compreensão será sempre a melhor forma de valorizar e entender a vida que hoje desfrutamos nas nossas sociedades abertas, cujo modelo resultou de um longo caminho, muitas vezes árduo, marcado por dramas e tragédias, utopias e conquistas daqueles que vislumbraram a possibilidade de se construir uma sociedade melhor [...] um conhecimento complexo em ordem à compreensão das visões mitificadas do nosso passado e, por essa via, o libertar da predominância horripilante dos fantasmas que ainda hoje nos podem atormentar." Foi a partir de meados do século XVII que o livre pensamento começou a se organizar nas confrarias dos artífices que, cem anos depois, fundamentariam a maçonaria. Então a indignação sobre brutais processos de julgamento tornou-se mais explícita. Pode-se dizer que esses tribunais de exceção perderam força com o advento da Maçonaria moderna. OS tRIBUNAIS

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